Dos laboratórios de pesquisa aos consultórios médicos, daí para as salas de aula até os ambientes corporativos. Qual a abrangência das Neurociências?
Já escrevemos aqui sobre como tudo começa a partir do cérebro. Pesquisadores defendem que "a mente é aquilo que o cérebro faz". Nos últimos anos, diferentes profissões e áreas do conhecimento tem se aprofundado nos conceitos das neurociências a fim de compreender os processos mentais e como administrá-los pode impactar respectivos campos. Nós do Instituto Neuronus acreditamos, de fato, que ter consciência desses processos pode trazer uma visão diferente sobre a forma que lidamos com nossas emoções, nosso corpo e nossas relações, tanto familiares quanto no ambiente acadêmico e de trabalho.
Na busca por parceiros e colaboradores de pesquisas e conteúdos, recentemente nossa equipe fez uma viagem a alguns laboratórios e centros de pesquisas na Europa para conversar com alguns cientistas a respeito do impacto das pesquisas em neurociências em diferentes áreas. Na Inglaterra, tivemos a oportunidade de visitar o Oliver Zhangwill Centre, um dos principais centros de reabilitação neuropsicológica do Reino Unido. De lá, partimos para Roma, onde visitamos a Fondazione Santa Lucia, um centro de reabilitação de referência na Itália, onde conversamos sobre o papel das neurociências nos processos de reabilitação física e cognitiva. Na Alemanha, visitamos o instituto IfADo – Leibniz Research Centre for Working Environment and Human Factors (Centro de pesquisa sobre o ambiente de trabalho e fatores humanos), um importante centro que conduz pesquisas multidisciplinares com o objetivo geral de proporcionar benefícios e bem-estar ao indivíduo e à sociedade, considerando o ambiente de trabalho. Por último, em Valência na Espanha, visitamos o CoNoCe (Centro de Neurociência Cognitiva), cuja especialidade é a reabilitação de crianças e jovens com transtornos de aprendizagem e do desenvolvimento. O resultado dessa jornada rendeu, além das parcerias, um panorama bem interessante sobre o papel das neurociências e da compreensão do funcionamento cerebral em diferentes áreas.
Hercílio Da Silva Júnior, Diretor do Neuronus em visita ao Oliver Zhangwill Centre, junto com o então diretor Prof. Andrew Bateman e Equipe.
Neuropsicologia: uma visão holística do paciente
Já dizia o grande pensador e psicólogo russo Alexander Lúria em 1992: “Se alguém quer estudar os fundamentos cerebrais da atividade psicológica, deve estar preparado para estudar o cérebro e o seu sistema de atividade, tão profundamente quanto a ciência contemporânea permitir.” A neuropsicologia, enquanto uma área do conhecimento surgiu a partir do interesse de compreender-se a localização anatômica das funções mentais e suas primeiras evidências enquanto ciência são oriundas de estudos conduzidos com indivíduos acometidos por danos cerebrais. O desenvolvimento da neuropsicologia acompanhou a evolução do estudo do cérebro, partindo da busca pela compreensão sobre a relação entre o organismo e os processos mentais, até o estágio atual, em que tenta compreender como o sistema nervoso modula nossas funções cognitivas, comportamentais, motivacionais e emocionais.
Prof. Andrew Bateman, Diretor do Oliver Zhangwill Centre, na Inglaterra
Dentro dessa perspectiva, conversamos com o Prof. PhD em Neuropsicologia Andrew Bateman, até então diretor do Oliver Zhangwill Centre, na Inglaterra. A instituição é uma das principais da Europa e tem contribuído consistentemente para o campo da reabilitação neuropsicológica nos últimos vinte anos. Segundo Bateman, lidar com pessoas com lesões cerebrais é um grande desafio, haja vista que o funcionamento cerebral ainda é um dos maiores enigmas a ser desvendado pela humanidade. Nos últimos anos, o Professor Andrew tem proposto uma visão holística no campo da reabilitação neuropsicológica, levando em consideração as dificuldades cognitivas e emocionais que advém de uma lesão cerebral, assim como a experiência e as metas individuais de cada paciente. "Como neuropsicólogos, nosso objetivo é ajudar o paciente a compreender sua própria lesão e, juntamente com ele, encontrar formas de superá-la", explica. "Fazemos isso baseando-nos em modelos cognitivos e emocionais que encontramos na literatura para guiar nossas avaliações e intervenções, contudo focando em seis pontos fundamentais: o ambiente terapêutico, o entendimento compartilhado do significado da lesão, a família, as estratégias de reabilitação cognitiva, a reabilitação psicológica e, por fim, a reabilitação funcional e vocacional", continua.
A tecnologia como aliada
Nas décadas mais recentes, o avanço da tecnologia tem permitido a investigação da função cerebral em níveis sem precedentes de detalhes e sofisticação, resultando em grandes conjuntos de dados que, além do aprendizado, contribuem para a criação de protocolos de tratamentos mais precisos e eficazes em reabilitação física e neuropsicológica. A Fondazione Santa Lucia, localizada em Roma, na Itália, conta com 60 laboratórios de pesquisa no Hospital e no European Centre for Brain Research (CERC). As atividades dessas instituições estão coordenadas em cinco linhas de pesquisas que atendem ao foco científico da Fundação.
Dentre elas, podemos destacar o departamento de Neurologia Clínica e Comportamental. O objetivo desta linha de pesquisa é estudar o substrato morfológico e funcional dos distúrbios neurológicos e seu diagnóstico funcional para fins de reabilitação. O estudo da recuperação de pacientes com doenças do sistema nervoso central inclui alguns métodos inovadores. Os laboratórios usam as mais recentes tecnologias para avaliar a eficácia desses métodos no desenvolvimento de déficits neurológicos.
Laboratório de Pesquisa em Afasia, Fondazione Santa Lucia - Prof. Paola Marangolo (à direita) e sua assistente.
Neste departamento, tivemos a oportunidade de visitar o laboratório de pesquisa em Afasia - um dos quadros clínicos mais difíceis de ser tratado em reabilitação. A professora PhD. Paola Marangolo, que coordena o laboratório, é especializada no diagnóstico e reabilitação de distúrbios da fala, principalmente Afasia, que é seu objeto de estudo há mais de 30 anos. Sua atividade de pesquisa concentra-se em funções corticais superiores e, em particular, no desenvolvimento de novas intervenções terapêuticas para a recuperação da fala.
Fonoaudióloga com PhD em Neuropsicologia, ao longo de sua carreira a Prof. Marangolo acompanhou o desenvolvimento da tecnologia em neurociências. Aliando novas técnicas às terapias convencionais, ela pôde perceber melhora na resposta dos pacientes aos protocolos de tratamento. Atualmente o seu laboratório utiliza principalmente técnicas de neuroestimulação cerebral não invasivas, como estimulação transcraniana por corrente contínua (tDCS) e estimulação transpinal por corrente contínua (tsDCS). Essas técnicas são utilizadas em combinação com protocolos específicos de tratamento intensivo da função linguística prejudicada, seguindo uma abordagem multidisciplinar que envolve o uso de ressonância magnética estrutural e funcional. Além disso, suas pesquisas comparam dados comportamentais, neuropsicológicos e de neuroimagem, relacionando dados de indivíduos saudáveis e indivíduos com lesões cerebrais, a fim de identificar sistemas neuronais indiretos (sistema motor, medula espinhal, cerebelo) que possam apoiar a recuperação da linguagem.
Diretores do Neuronus (Bruno Braga e Hercílio Júnior) em Visita à Fondazione Santa Lucia, em Roma
Prof. Michael Nistche, do departamento de Psicologia e Neurociência do iFADo, em Dortmund, na Alemanha.
O Cérebro, o ser humano e os ambientes de trabalho.
As condições modernas de trabalho são altamente exigentes em relação ao processamento cognitivo, incluindo a aprendizagem ao longo da vida, a flexibilidade do controle comportamental e os componentes afetivos/emocionais. O departamento de Psicologia e Neurociências do iFADo, em Dortmund, na Alemanha, tem como objetivo compreender os fundamentos fisiológicos e psicológicos desses processos relevantes ao desempenho do trabalhador, atuando desde a pesquisa básica até a aplicação em cenários reais de trabalho. O prof. Michael Nistche, um dos responsáveis pelo departamento, explica que "o melhor entendimento dos fatores que influenciam esses respectivos processos ajuda a identificar e implementar benefícios, além de evitar condições de trabalho aversivas de maneira racional, otimizando, assim, o desempenho das pessoas e evitando doenças relacionadas ao trabalho".
Os projetos de pesquisa ligados à Psicologia e Neurociências do iFADo são, portanto, organizados segundo tópicos altamente interligados, desde o estudo dos determinantes e moduladores da atividade cortical e neuroplasticidade no cérebro humano; das bases fisiológicas e mecanismos psicológicos da cognição, funções motoras e emoção; e, por fim, da melhoria fisiológica das condições de trabalho. O objetivo desses estudos é melhorar a compreensão dos mecanismos de plasticidade no cérebro humano, incluindo o desenvolvimento de novos protocolos de intervenção, e identificar fatores intrínsecos e extrínsecos, que afetam a atividade cerebral, e neuroplasticidade, ou seja neuromodulação. Para isso é necessária a identificação dos determinantes fisiológicos e psicológicos dos processos cognitivos, motores e emocionais. Por isso, a instituição dedica-se a tópicos específicos como o controle flexível de comportamento, funções motoras, extinção de aprendizado e o impacto neuromodulador na aprendizagem, memória e atenção.
Por entender que o conhecimento sobre o impacto dos processos neuromodulatórios na fisiologia, cognição, sistema motor e emoção do cérebro humano ajuda a definir condições de trabalho que promovem a saúde e o desempenho, a instituição se dedica a duas missões. Primeiro, identificar condições que melhoram o benefício e reduzem o custo do processos de autocontrole. Segundo, buscar intervenções que possam ajudar na superação das dificuldades que advém do declínio das funções relacionadas ao envelhecimento, incluindo o aprendizado e a formação de memória, bem como desenvolver condições adequadas para melhorar a performance e o bem-estar dos indivíduos, transferindo-os para condições reais de trabalho.
O cérebro que aprende
No campo da Educação conhecer sobre o funcionamento do cérebro é fundamental. Afinal, ele está envolvido em todos os processos que envolve a aprendizagem, o registro e evocação das informações na memória, a atenção, foco, o gerenciamento do comportamento, e o que se conhece por Funções Executivas. Estas funções são habilidades cognitivas necessárias para controlar nossos pensamentos, nossas emoções e nossas ações e impactam na vida social, afetiva e intelectual desde a infância até a idade adulta. O seu mau funcionamento pode acarretar uma série de déficits e transtornos, como o TDA, TDAH, Dislexia, entre outros.
Dependendo do nível de gravidade, o subtipo de TDAH e transtornos associados podem incluir uma leve dificuldade de atenção que altera a produtividade da vida diária e a possíveis relações disruptivas tanto na família como na escola. Geralmente é acompanhado, em grande parte da população afetada, por resultados acadêmicos inadequados ao longo da vida escolar ou, em caso de adultos, um desempenho de trabalho inadequado, o que leva alguns dos afetados a intervir em comportamentos distróficos.
Dra. Monica Pistoia, diretora do Centro CoNoCe, em Valência, Espanha.
Criança em sessão de Neurofeedback
Graças ao avanço da tecnologia e da neurociência cognitiva, atualmente é possível monitorar os ritmos cerebrais por meio das ondas de eletroencefalograma e exames de imagem. Detectada alguma atividade anormal, existem técnicas de neuromodulação e autorregulação capazes de alterar esses ritmos, potencializando foco, atenção e consequentemente performance. É o que acontece no Centro CoNoCe de Neurociência Cognitiva, localizado em Valência, na Espanha. A instituição é especializada na avaliação, diagnóstico e tratamento de transtornos de aprendizagem e do desenvolvimento.
No centro são realizadas baterias de testes neurocognitivos, que são customizadas de acordo com o perfil dos sintomas que o paciente apresenta. Uma série de funções mentais são medidas para que se chegue a um diagnóstico. Através dos resultados observados, a equipe multidisciplinar analisam as funções corticais que podem estar afetadas. Este tipo de estudo neurocognitivo é realizado para avaliar como essas funções operam ao longo de um dia de trabalho. As intervenções são feitas considerando-se os resultados da bateria de diagnóstico e os dados clínicos obtidos em entrevistas com a família e o paciente. A partir daí, é desenhado um protocolo de tratamento que pode envolver diferentes tipos de intervenção, desde treinamentos com Neurofeedback até o uso da Estimulação Transcraniana por Corrente Contínua (tDCS) combinada com terapia cognitiva comportamental.
Para a Dra. Monica Pistoia, neuropsicóloga e diretora do CoNoCe, é necessário estar atento aos sinais desde os primeiros períodos de desenvolvimento infantil. "Há períodos de maior flexibilidade cognitiva no desenvolvimento da criança que podemos considerar como uma janela de oportunidade para tratar transtornos como o TDAH de maneira precoce", explica. A neurocientista ainda aponta que as consequências de não detectar e tratar esses períodos críticos em uma criança a tempo podem ter sérias consequências no seu desenvolvimento psicossocial e acadêmico.
Concluindo...
Dos laboratórios de pesquisa aos consultórios clínicos, das salas de aula aos escritórios de grandes organizações, muitas são as áreas que podem se beneficiar de um entendimento mais aprofundado sobre o cérebro e como ele funciona. Afinal, todos os processos que envolvem decisão, aprendizagem, memória, empatia e alta performance tem o seu início no processamento de milhões de sinapses que ocorrem a todo instante nele. Nos últimos anos a tecnologia favoreceu um avanço enorme nos estudos e pesquisas relacionados a neurociências. Se a parcela de conhecimento que já se tem disponível é fascinante, imagina o que ainda há para ser descoberto.
Se você quer aumentar a sua bagagem de conhecimento sobre este assunto, fique ligado nos conteúdos que o Instituto Neuronus está preparando. Nossa missão é conectar cientistas e profissionais de diferentes partes do mundo e de diversos campos da ciência para discutir, projetar e desenvolver pesquisas aplicadas sobre o cérebro humano. Além disso, buscamos capacitar e equipar profissionais através de um fundamento sólido, uma perspectiva atual e um olhar transdisciplinar sobre a neurociência.